sábado, 31 de dezembro de 2016

Branco - XCIV


EU VI AS VOZES




Eu vi as vozes claramente vistas

e quis ver mais:

é este o quase branco dos avós

e dos avós desses avós sem pais?



Não ouço o silêncio que desliza

pelo branco,

nem quero saber mais:

eu vi as vozes sem sons nem pranto.





José António Matos

Que venham as aves - poemas 2005/2015, Real Gana, i.e., Figueira da Foz, 2016


sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Vermelho - XCII


Lua-Cheia


FEBRE VERMELHA



Rosas de vinho! abri o cálice avinhado,
Para que em vosso seio o lábio meu se atole:
Beber até cair, bêbado, para o lado,
Quero beber, beber até ao último gole!


Rosas de sangue! abri o vosso peito, abri-o!
Montanhas alagai! deixai-as transbordar!
Às ondas como o Oceano, ou antes como um rio
Levando na corrente Ofélias de luar…

(…)

Amo o Vermelho. Amo-te, ó hóstia do sol-posto!
Fascina-me o escarlate, os meus tédios estanca:
E apesar disso, ó cruel histeria do Gosto,
Miss Charlotte, a flor que eu amo, é branca…

         Leça, 1886





António Nobre
Só (1892), Livraria Tavares Martins, 14ª ed., 1968



Cores


(…)

     - Que estiveste a fazer aí, Griet? – perguntou ele.
     Fiquei surpreendida com a pergunta, mas não era tão ingénua que o revelasse.
     - A cortar legumes. Para a sopa.
    Dispunha sempre os legumes em círculo, agrupados como fatias de empada. Havia cinco fatias: couve roxa, cebola, alho-porro, cenoura e nabo. Tinha-me servido da lâmina de uma faca para dar forma a cada fatia e tinha colocado um disco de cenoura no centro.
     O homem bateu com um dedo na mesa.
    - Puseste-os pela ordem em que os vais meter na sopa? – sugeriu ele, examinando o círculo.
    - Não, senhor. – Hesitei. Não lhe podia dizer porque dispusera os legumes daquela forma. Limitara-me a dispô-los como me parecia que deviam estar, mas sentia-me demasiado assustada para dizer isso a um cavalheiro.
     - Vejo que separaste os brancos – disse ele, indicando os nabos e as cebolas. – E depois o cor-de-laranja e o roxo, que não vão bem juntos. Porque foi? – Pegou numa tira de couve e num pedaço de cenoura e sacudiu-os na mão como se fossem dados.
     Olhei para a minha mãe, que fez um ligeiro aceno de cabeça.
     - As cores brigam quando estão ao lado umas das outras, senhor.


(…)



Tracy Chevalier
Rapariga com Brinco de Pérola (1999), Biblioteca Sábado, 2010.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Preto e Branco - LXVII



Norbert Miguletz (Foto)

Spazio ad Attivazione Cinetica

Marina Apollonio

OP Art - Museu Schirn - Frankfurt

(2007)



http://www.schirn.de/en/exhibitions/2007/op_art/

Amarelo - LXIV


CARTA A MANUEL


(...)

             Tentúgal toda a rir de casas brancas!
A boa aldeia! Venho cá todos os meses
E contrariado vou de todas essas vezes.
Venho ao convento visitar a linda freira,
Nunca lhe falo: talvez, hoje, a vez primeira...
Vou lá comprar um pastelinho, que eu bem sei
Que ele trará dentro um bilhete, isto sonhei:
Assim o pastelinho, ó ventura sonhada!
Tem de recheio o coração da minha Amada.
Abro o envelope ideal. Vamos a ver.. - Traz? - Não!


Regresso a Coimbra só com o meu coração.

               
       Coimbra, 1888-89-90





António Nobre
, Livraria Tavares Martins, 14ª ed., 1968

Amarelo - LXIII



Forno Solar



http://www.pensandoaocontrario.com.br/2013/07/cozinhando-com-o-sol-revolucao-dos.html

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

René Magritte



René Magritte

L'Art de la conversation

(1950)



https://www.wikiart.org/en/rene-magritte/the-art-of-conversation-1950-3

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Vermelho - XCI


ETERNO FEMININO



Faz-me lembrar
o meu romance 
do Rio Grande.

Eu era vaqueiro.
Suava cavalos,
comia bom bife.

Ela dormitava
lá no Rio Grande.

Um dia, ela disse:
Traz o meu cavalo,
vem daí comigo.

Fui.




Ruy Cinatti
Conversa de Rotina
(1973)

(Ruy Cinatti-Antologia Poética, Joaquim Manuel Magalhães, Ed. Presença, 1986)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Azul - CLXXXIII



José Fernando Vasco

Pessoas não têm raízes

Pantónio

(2014 - Figueira da Foz)



http://pallasathena-pt.blogspot.pt/2014/11/pantonio-na-2-edicao-do-fusing-figueira.html



domingo, 11 de dezembro de 2016

Amor - LXV


(…) 
Uma biblioteca, como sabe qualquer amante de livros, é constituída também, ou talvez sobretudo, por livros que ainda não lemos: o saber que acumulam não respeita apenas ao passado – os já lidos – mas constitui antes uma ferramenta de conhecimento por revelar no futuro – à nossa espera, do dia em que tenhamos tempo, real ou imaginário, para eles. Mas porque nos custa tanto desfazermo-nos de obras, incluindo menores, que calculamos nunca vir a consultar? Independentemente da função utilitária e formativa, existe, na relação dos amantes dos livros com os livros, um vínculo amoroso que não deixa de ser obsessivo (…)




Ana Cristina Leonardo
Jornal Expresso, 2/10/2015

Cores


Os livros são um amor pesado. Arrastam-se atrás de nós como fantasmas, mesmo antes de arrastarmos fisicamente com eles, de lugar para lugar. Os livros tornam-nos conservadores: naqueles momentos em que nos apetece mudar de casa, de país, de mundo, eles perfilam-se diante dos nossos olhos, solenes, um exército de capas rijas desafiando o nosso desejo de mobilidade.
(…)
Decidimos então escolher – mas os livros ensinaram-nos também a precariedade das escolhas e das decisões. Há uma época da vida em que descobrimos que aquilo a que chamámos escolhas fundamentais resultou de um conjunto de factores e circunstâncias que, afinal, não dominámos. Fomos arrastados na enxurrada, sobrevivendo a temporais diversos – e agora, no promontório a que damos o nome de maturidade (porque ganhámos nos livros o vício de dar nome a tudo, classificar, organizar, compreender, explicar) olhamos para as escolhas que esboçámos e abandonámos, e esforçamo-nos por recomeçar o desenho da nossa vida, numa página em branco. Mas aprendemos que o branco puro não existe – nem o negro, nem o amarelo, nem o azul ou o vermelho. Nenhuma cor é afinal absoluta como nós pensávamos, nesse tempo em que chamávamos razão ao instinto, paixão ao desejo, amor ao medo, originalidade à arrogância e ousadia à provocação. Ou vice-versa – tínhamos um feixe de certezas absolutas, e uma incapacidade atávica de escutar as várias versões de uma mesma história. Talvez fosse apenas impaciência – mas nós chamavamos-lhe idealismo. Gostávamos tanto de livros que nos tornámos caçadores de palavras – e deixávamo-nos balear por elas, como se fossem canções. Agora olhamos para os livros como sinfonias, feitas de deambulações em torno de um tema recorrente, que se vai revelando em diferentes tons – à semelhança das nossas vidas. 
(…)



Inês Pedrosa

Jornal Expresso, 9/2/2008

Azul - CLXXXII



Hazul Luzah

Porto - Portugal



http://www.arquiteturaportuguesa.pt/hazul/

Branco - XCIII



Snohetta

San Francisco Museum of Modern Art

(2016)



http://designlarge-d.blogautore.repubblica.it/category/architettura/


sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Preto - XLII




Coco Chanel

Vestido Preto



Coco Chanel

Vestido Preto

Vogue

(1926)

http://www.hungertv.com/feature/ten-ways-coco-chanel-changed-fashion/

http://www.fashionfab.com/blog/?tag=coco-chanel

Branco - XCII



(...) "Elogio da Sombra é justamente o título de uma obra notável de Junichiro Tanizaki publicada em 1933. Este ensaio clássico da literatura japonesa começa com uma avaliação das consequências da introdução da electricidade no Japão: as alterações que ela irá provocar na arquitectura e no quotidiano dos japoneses, em particular porque será preciso encontrar formas de proteger a cor branca, essa cor que é a do recuo dos signos, e que ficará sujeita à predação da luz eléctrica. O branco serve para distanciar as coisas da sua natureza, para transformar tudo num ritual de representação para que o real permaneça na sombra." (...)



António Pinto Ribeiro
Elogio da Sombra
Jornal Público, 25/10/2013

Cores



The Super Van

(2016)

"Muro" - Festival de Arte Urbana de Lisboa


http://musicartblog.blogs.sapo.pt/tag/m%C3%A1rio+bel%C3%A9m

Azul - CLXXXI


Não sou mulher de superstições.
Nunca fui.
(...)
Mas desde há muitos anos (e quando digo "muitos" é mesmo "muitos"...) que não transijo num pormenor: nunca me visto de verde.
(...)
Até que há dias tomei uma atitude verdadeiramente heroica.
Tinha sido convidada para um programa de televisão, em directo, e a única recomendação que me tinham dado era "não vista riscas nem bolas".
Foi então que pensei:
- É agora! Nada melhor para acabar de vez com esta tolice.
Vai daí, no próprio dia da emissão (para não me arrepender à última da hora...) entrei no El Corte Inglês (desculpem lá a publicidade...) subi por aquelas escadas acima, e vá de mexer em todas as camisolas que encontrava para ver se descobria alguma que me pudesse servir para a ocasião.
Finalmente encontro uma camisola verde, verde mesmo, verde a sério, verde-que-te-quero-verde. Nada de hesitações, pago, peço que tirem todas as etiquetas porque - confesso à empregada, espantada com a minha pressa - "é para usar já!".
Com ela vestida meti-me num táxi e corri para os estúdios.
Prendem-me um microfone à camisola (verde), e lá me sentam ao lado da jornalista, que está ligada pelo ouvido à régie onde - segundo depreendo - lhe estão a dar alguma ordem de última hora.
Ela diz-me qualquer coisa muito baixinho e eu não ouço, e ela tem de repetir, mas só à terceira vez é que eu a entendo:
- Da régie estão a perguntar se não se importa que a sua camisola vá aparecer azul em vez de verde... É que o cenário atrás de si é verde, e por isso temos de mudar a cor, senão não se distingue nada. Vai aparecer de azul... Não se importa?
E lá apareci no ecrã. De azul. (...)



Alice Vieira
A Camisola Verde
Jornal Sénior, 5/12/2003

Bitori Nha Bibinha




Bitori Nha Bibinha
(Victor Tavares)

Julinha


quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Cores


(...)

Questão: se existem rosas de muitas cores, chamar uma rosa de cor de rosa não seria uma imprecisão semântica? Como não existe só uma cor de rosa, identificar uma como "cor de rosa" não significa chamar todas as outras cores de ilegítimas, ilusórias, impostoras ou extra-oficiais? Correcto seria chamar a rosa cor de rosa de cor de rosa cor de rosa. Ou cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa (vai acabar o espaço) cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa cor de rosa (acabou)...


Luís Fernando Veríssimo
A Matutar
Jornal Expresso, 10/2008

Artemisia Gentileschi



Artemisia Gentileschi

Auto-Retrato

(1638-1639)

http://artemisiainc.com/blogs/artemisia-blog/11307413-meet-artemisia





(...)"A pintura mostra a artista envolvida na revelação da realidade, que é inerente ao acto de pintar, mas não exibe a consciência de si mesma da autora, contrariamente ao que costuma suceder neste género de representações. Não olha para nós, não se mostra de frente. Pelo contrário, o seu corpo traça um arco de tensão e vontade apontado ao objecto que quer pintar e que não vemos porque está mergulhado na luz emitida pela realidade, ou seja, emitida de fora do quadro. A mão e o pincel estão ainda imóveis. Os lábios entreabertos. Os olhos atentos. Não há na imagem convencionalidade, mas tão-pouco sedução ou falsa modéstia. É uma imagem de uma mulher que trabalha, e é precisamente disso que resulta, como uma espécie de transpiração do espírito, a graça das linhas curvas do corpo, da lisura branca da pele, da desordem matinal do penteado. " (...)



Paulo Varela Gomes
Um Tractor Cor-de-Rosa 
Jornal Expresso, 8/9/2013


Branco - XCI



O segredo da sobrevivência é uma imaginação defeituosa. A incapacidade dos mortais para imaginar as coisas como elas realmente são é o que lhes permite viver, uma vez que um vislumbre momentâneo, incontido, da totalidade do sofrimento do mundo os aniquilaria imediatamente, como uma lufada da mais letal emanação de canos de esgoto.



John Banville
Os Infinitos (2009), ASA, 2011

Eugene Atget



Eugène Atget

At Quai du Pont Neuf, Paris

 (1908)

© BnF, Département des Estampes et de la photographie





http://www.photography-now.com/exhibition/52535

Vermelho - XC

(...)

No milénio que vem vai ser um fardo
conseguir encontrar a minha campa,
mas estarei pertinho de Appleyard,
das latas d'HARP, ou doutra nova tampa.

Procurai Byron, Wordsworth, ou virai
à esquerda entre Richardson e Broadbent.
Trazei uma solução e esfregai
qualquer novo palavrão aí presente.

Se amor à arte, ou amor, enxovalho
causar algum grafito a quem o lê,
apagai talvez FODA-SE e CARALHO
mas deixai, c'UNITED, um pequeno v.

Vitória? P'las forças lentas que a seu turno
escavam p'la alma os veios do corpo.
Sairá a Terra do "orbe diurno"
antes de o carvão se criar de novo?

Escolhei um dia como o que eu escolhi
em Maio, quando macieira e espinheiro
agarram a flor e não dão de si,
mesmo que os putos chutem o dia inteiro.

Se, chegado aqui, quem os tenha lido
quer entender os versos que deixei,
defronte à campa, de costas pra Leeds,
leia o epitáfio que eu planeei:

Aqui jaz o poeta, em baixo um poço.
Adepto/a da poesia, se aqui estás
pra ver poemas nascer da MERDA (foge!):
procura a carne, a cerveja, o pão, e olha pra trás.



Tony Harrison
V.,1985 - Antígona, 1999 - Tradução de Manuel Portela

Branco - CLXXVII


COMUTADOR


                                      Para o Pedro Oom




Ergo-me de ii no zimbório
de folhas na penedia do castelo medieval
de limos na humidade da praia
de cristais entre os rochedos do Cabo Horn


Caminho de gelo na floresta
de sôfrego na vastidão do deserto
de louco na brancura do hospício


EU abismo, eu cratera
inclinei-me e vi um espectáculo caprichoso: uma unha branca
uma unha branca a viver assim despreocupada


OGIVA-BORBOLETA
Arco-de-Cor caído muito triste
Casulo de quem ninguém falou
Teia de Aranha exposta à loucura e ao tempo
Andorinha-Azul de chapéu mole e baratas na cama
VENTOINHA.



António Maria Lisboa
Ossóptico e Outros Poemas (1952), in: Poesia, Assírio & Alvim, 2008


Cores




Coldplay - The Scientist

(2002)


Contraponto

(2014)



Come up to meet you, tell you I'm sorry
You don't know how lovely you are
I had to find you, tell you I need you
Tell you I set you apart

Tell me your secrets and ask me your questions
Oh, let's go back to the start
Running in circles, coming up tails
Heads on a science apart

Nobody said it was easy
It's such a shame for us to part
Nobody said it was easy
No one ever said it would be this hard
Oh, take me back to the start

I was just guessing at numbers and figures
Pulling the puzzles apart
Questions of science, science and progress
Do not speak as loud as my heart

Tell me you love me, come back and haunt me
Oh, and I rush to the start
Running in circles, chasing our tails
Coming back as we are

Nobody said it was easy
Oh, it's such a shame for us to part
Nobody said it was easy
No one ever said it would be so hard
I'm going back to the start



https://www.letras.mus.br/coldplay/64278/

Amor - LXIV


AMOR: -



Quando te procurei em rotas de seda e ouro, eu não sabia que o amor é uma espera de mágoa e mel. Nem suspeitava que há nos corpos nus a enchente das marés que altera a tempestade. E desconhecia que é preciso empunhar o leme para que as águas inundem desesperadamente as margens.



Graça Pires
Caderno de Significados, Lua de Marfim, 2013