sábado, 25 de março de 2017

Azul - CLXXXV


Viagem





Remo
(e isso é
tudo).

Afasto-me
(e isso
basta).






A.Oliveira
Lugares de rio

terça-feira, 21 de março de 2017

Branco - XCVII



AS FOTOGRAFIAS




As fotografias precedem a memória,
são a realidade parada de luz.
As fotografias evoluem como os olhos,
entre reformulações e malogros.
As fotografias não amarelecem, queimam,
não se enchem de pó mas de granizo.
As fotografias duram mais que a memória,
mas não muito mais.



Pedro Mexia
Em Memória, Gótica, Lisboa, 2000


segunda-feira, 20 de março de 2017

Verde - L


Superfícies Apetecidas






I

Está a terminar esta estação,
indolente como as causas
que se cansam antes das consequências.

As temperaturas perdem-se
e a maioria dos lugares não tem sítio certo.

Com inconsolável desvelo
os rios
deixam-se atravessar por quem não deve
enquanto a felicidade verde,
disfarçada de companhia,
a custo se contém nos passeios de água doce.

Só as saudações menores resistem:
não unem nem separam.




Boaventura de Sousa

Viagem ao Centro da Pele, Edições Afrontamento, Porto, 1995

Branco - XCVI


    
     "COMO É GLORIOSO iniciar uma nova carreira, e aparecer subitamente no mundo culto, com um livro de descobertas na mão, tal um cometa inesperado que fulge no espaço!
     Não, não mais guardarei o meu livro in-petto; ei-lo, senhores, leiam-no. Iniciei e terminei uma viagem de quarenta e dois dias à roda do meu quarto. As observações interessantes que recolhi e o  prazer contínuo que experimentei ao longo do caminho fizeram com que desejasse torná-la pública; a certeza de ser útil conduziu-me a esta decisão. Sente o meu coração uma satisfação inexprimível quando penso no número infinito de infelizes a quem ofereço um meio garantido contra o tédio e um alívio para os males que sofrem. O prazer que se encontra ao viajar no próprio quarto está ao abrigo da inquieta inveja dos homens; é independente da fortuna.
     Terá uma pessoa de ser, efectivamente, bastante infeliz, assaz abandonada, para não ter um reduto onde possa refugiar-se e esconder-se de toda a gente?
      Eis todos os condimentos da viagem."
(...)
Xavier de Maistre
Viagem à roda do meu quarto
 (1795)
& etc - Edições Culturais do Subterrâneo, Lisboa, 2002

domingo, 19 de março de 2017

Preto e Branco - XLVIII


XLIV
 
 
 
Acordo de noite subitamente,
E o meu relógio ocupa a noite toda.
Não sinto a Natureza lá fora.
O meu quarto é uma coisa escura com paredes vagamente brancas.
Lá fora há um sossego como se nada existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído.
E esta pequena coisa de engrenagens que está em cima da minha mesa
Abafa toda a existência da terra e do céu...
Quase que me perco a pensar o que isto significa,
Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca,
Porque a única coisa que o meu relógio simboliza ou significa
Enchendo com a sua pequenez a noite enorme
É a curiosa sensação de encher a noite enorme
Com a sua pequenez...
 


 
 
 
Alberto Caeiro
Fernando Pessoa - Obra Poética, II Vol., Círculo de Leitores, Lisboa, 1986
 


Cores


"Lisboa
 
 
 
(...)
 
 
 
Fernando é uma parte do seu quarto, por isso os seus sonhos se agarram às paredes. Ao tocar-lhes sente a consistência, a temperatura e a humidade do que sonhou. Por vezes, quando acorda, sente o cheiro a medo e o calor dos pesadelos. Há dias em que o quarto cheira a Índia, onde Fernando nunca esteve senão em sonhos de longe, com aromas e cores sem nome. Há outros em que os cheiros do passad0 se entranham nos lençóis e os pesadelos são leves, feitos de vozes doces que chamam por ele.
 
(...)
 
 
Viver num sítio é ser esse sítio, emprestar-lhe uma alma e receber outra em troca. As biografias deviam ordenar-se por lugares, e não por datas. Nesta rua fui assim, numa outra fui diverso. Ninguém sabe descrever uma cidade, são as cidades que nos escrevem a nós."
 
(...)
 
 
 
 
Nuno Camarneiro
 
NO MEU PEITO NÃO CABEM PÁSSAROS, D. Quixote, Lisboa, 2011

Cores


XL
 
 
 
Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.
 
 
 
 
 
Alberto Caeiro
Fernando Pessoa - Obra Poética, II Vol., Círculo de Leitores, Lisboa, 1986