terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Amor - LXIX


    Os amores felizes não têm história, escreveu há anos Louise Poissant [Poissant, 1988] na senda de Tolstoi. Com efeito. Depois dos obstáculos, nada mais há a contar. Sim, assumimos ao longo dos séculos que a felicidade não tem história. Tolstoi deixou-o bem claro. O amor não é feliz. Ou, pelo menos, assim temos a prová-lo uma longa tradição que o liga primeiro ao corpo, depois à alma, mas sempre à morte, essa ilha em que o humano se define e perde. E viveram felizes para sempre não tem comentário possível. Assim cai o pano.



Emília Ferreira

Aras Banhadas de Sangue Humano, in A Pulsão do Amor - Arte Partilhada Millennium bcp - Catálogo da Exposição - Espaço Chiado, Coimbra, Festival das Artes - 16/6-17/9/2011

Branco - CI


     Não só os sentimentos criam palavras, também as palavras criam sentimentos. As palavras formam uma arquitectura de ferro. São a vida e quase toda a nossa vida - a razão e a essência desta barafunda. É com palavras que construímos o mundo. É com palavras que os mortos se nos impõem. É com palavras, que são apenas sons, que tudo edificamos na vida. Mas agora que os valores mudaram, de que nos servem estas palavras? É preciso criar outras, empregar outras, obscuras, terríveis, em carne viva, que traduzam a cólera, o instinto e o espanto.



Raul Brandão
(1917)

Húmus, Quidnovi, Porto, 2008

Cores



Caribaci




Ganso-comum-ocidental
(Anser anser)

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Mulheres - XV




Anaquim
Sou imune ao teu charme
(2016)

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Branco - C


(...)


     As minhas cobaias afirmam que, à frente do quiosque dos jornais, na tabacaria, ao entrar no comboio ou na casa de banho de um restaurante, cruzam com outras pessoas a dizeram umas para as outras, em voz alta: "Vês, é mesmo o Tal". "Tens a certeza?" "Claro, é mesmo ele". E continuam a sua conversa amavelmente, enquanto o Tal sente que eles não se importam que ele os ouça, como se ele não existisse.
       Ficam confusos com o facto de um protagonista do imaginário "massmediático" entrar de repente na vida real, mas, ao mesmo tampo, perante a personagem real, comportam-se como se ela pertencesse ainda ao imaginário, como se aparecesse no écran ou numa fotografia de uma revista e eles estivessem a falar na sua ausência.

(...)

Os mass media primeiro convenceram-nos de que o imaginário era real e agora estão a querer-nos convencer de que o real é imaginário. Quanto mais realidade os ecrãs nos mostrarem, mais cinematográfico se torna o mundo de todos os dias. Até que, como queriam alguns filósofos, acabaremos por pensar que estamos sós no mundo e que todo o resto é o filme que Deus, ou um génio maligno, nos projecta à frente dos olhos.

(1989)


Umberto Eco

O Segundo Diário Mínimo, Difel, 1993

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Mulheres - XIV


Sabe quem são os seus leitores?


As mulheres adoram os meus livros. Talvez por escrever sobre relações. Alguém disse que só as mulheres lêem romances. Se pensar nos meus amigos, vejo que é verdade.

Mas é muito masculino na escrita. Como acede ao universo das mulheres?

Não concordo. Estou interessado em escrever sobre homens e mulheres. Como acedo? As mulheres têm facilidade em falar de sentimentos, descrevem como vivem, e falo muito com mulheres. As suas conversas fascinam-me.




Hanif Kureishi


Expresso - Actual, 1/12/12 (entrevista de Ana Soromenho)

domingo, 17 de dezembro de 2017

Amarelo - LXV



Perpétua-das-areias


 (Helichrysum stoechas )






http://floradaserradaarrabida.blogspot.pt/2014/01/perpetua-das-areias-helichrysum.html

Amor - LXVIII


(...)

Referiu numa entrevista que, numa sociedade obcecada pelo trabalho, o sexo é o único lugar que nos resta para o descontrolo e que a si lhe interessa o descontrolo.


É a única coisa que pode arruinar uma carreira. Veja o escândalo na América com o caso Petraeus. Podemos pôr a questão no plano do sexo, mas não está certo. Este homem quer esta mulher. Pode parecer estúpido, mas é uma coisa tremenda. Porque ele sabe que é um momento, pode perder tudo, é um grande risco. É uma história de traição e de ruína e, no entanto, ele não consegue evitar. Até onde podemos ir? Não é só sexo. É muito mais misterioso e enorme. Por isso é que estes escândalos interessam tanto às pessoas. São coisas importantes sobre a vida e os seres humanos. Todos os grandes romances são sobre isso: Madame Bovary, Anna Karenina, António e Cleópatra. Todos arriscaram a vida por causa do desejo. A única coisa interessante é o amor.



Hanif Kureishi

Expresso - Actual, 1/12/12 (entrevista de Ana Soromenho)

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Joy Division





Joy Division
Closer
(1980)
Passover 

Amor - LXVII



2.

Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.
Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.
Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.
Porém, pera cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa
Aqui falta saber, engenho e arte.


Luís de Camões
Sonetos - Edição de Lobo Soropita (1595), in Lírica, Círculo de Leitores, 1980

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Artur Mendes



António Pinho Vargas
Dança dos Pássaros
(1993)

Artur Mendes (sax.)
Iryna Brazhnik (p.)
(2011)


Arco-Íris






Descobri José Manuel Castanheira através dos seus desenhos. Tocaram-me especialmente, porque possuídos de uma linguagem, impressionista e objectiva, se situam bem próximos de mim, quer afectiva quer profissionalmente. Esses desenhos procuram não só o prazer de olhar, mas também, e isso será o essencial, conseguir fixar com claridade aquilo que se tornará num espaço para um espectáculo.
Compreendo-o porque em cada cenógrafo existe esse desejo de dar a "ver" o que mais tarde serão os sons, as cores e os perfumes de uma representação teatral, com os primeiros desenhos, esquissos e outros croquis rabiscados em pedaços de papel.
Esses esboços funcionam como um contrato com aquele a quem eles desejam convencer, normalmente o encenador; serão então devolvidos, meses mais tarde, sobre o palco, tomando forma e espírito,
É aí também que reside a arte do cenógrafo; não se deixar traír quando a escala se torna humana. (...)



Guy-Claude François

José Manuel Castanheira - scénographies 1973-1993 - Catálogo da Exposição no Centre Georges Pompidou - 15 de Setembro-1 de Novembro de 1993, Nobilis, 1993



sábado, 9 de dezembro de 2017

Cores


     O que me resta, portanto, para existir, é a pintura. Se deixasse de pintar seria o desespero total. As cores, as cores e nada mais, são a única linguagem que consigo falar, as cores dizem-me ainda alguma coisa. São vivas, ao passo que as palavras perderam para mim sentido, valor, toda e qualquer expressão. As cores, para mim, são ainda deste mundo; cantam, são deste mundo e parece-me que me põem em comunicação com o Outro Mundo. Nelas encontro o que a palavra perdeu. Elas são a palavra: é o desenho, também, mas é sobretudo a cor que é palavra, linguagem, comunicação, vida, tudo quanto pode pôr-me em comunicação com o resto, com o universo. É o que me prende a Ele, o que faz com que eu viva. Mas tenho ainda outro receio, receio que as vozes das cores se esgotem, se extingam. Medo de me repetir, portanto, medo de que elas não retornem depois de terem chocado com a parede fria da não expressão: porque a repetição é mortal, cliché mortal, não invenção, ou seja, não vida, esgotamento.
      É esse receio, segundo F., que explica os meus desarranjos intestinais, a minha tristeza, o meu abatimento, a depressão. E isso pode impedir-me de pintar: tenho receio de nunca mais poder pintar. Sim, é este receio que pode vir a enterrar-me ainda vivo, por tão pouco tempo ainda vivo. A cor, ó vida minha, cores, palavras minhas derradeiras, cores, personagens deste mundo, cores minhas testemunhas, meus universos, cores, existências, cores vivas, acompanhai-me, ajudai-me, vivei para que eu exista, cores, vós figuras vivas, sinais da vida, enfeites.


Eugène Ionesco
a Busca Intermitente, Difel, Lisboa, 1990

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Branco - XCIX


Ah, ser de tudo apenas no reboco
andar de borco                       ser louco
e olhar o obtuso da batalha                      secreto
rouco.


A.Oliveira
Lugares de lume

Branco - XCVIII



Penso que devíamos ler apenas os livros que nos mordem e nos picam. (...) um livro tem de ser o machado para o mar gelado que se encontra dentro de nós. É o que eu penso.

Franz Kafka

Os Contos - 2º vol., Assírio & Alvim, 2012