sábado, 15 de dezembro de 2012

Cores

     Na Praia do Almoxarife, às chuvas de um Outono precoce seguiram-se dias lindos. Os carros carregados dos últimos balseiros de uva chiavam para o lado das adegas. Os penedos que fechavam a língua de areia num anel douravam-se ao entardecer, e toda a lava das vinhas - o biscoito - ficava negra e despida debaixo de um sendal cor de palha, a que a folha das parras, crestada e caída uma a uma, dava uma nota sanguínea. João Garcia recolhia de um dos seus grandes passeios solitário ou em companhia do padrinho. Passavam aos grandes bebedoiros do gado, que deitavam água por fora e que as cabeças das vacas, rijamente enramadas, babavam bebendo devagar. Então apareci uma sainha curta ao longe, a forma tímida e vestida de escuro de Carlota, o bordão comprido e compassado ao encontro de João, apanhava uma folha da rama de milho caída das seves abertas e, desfiando-a nos dentes, aproveitava o minuto preciso para que todos se juntassem:
         - Vais hoje ao quino? Não faltes...
     E aquela intenção, sublinhada no beicinho rente e rápido, crava-se na alma de João como uma gota que dá falso rebate de chuva ou a pontinha insidiosa de uma alfinete perdido.

Vitorino Nemésio
Mau Tempo no Canal
(1944)

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