sexta-feira, 14 de abril de 2017

Amor - LXVI




Janita Salomé
Credo

(1994)





CREDO


Creio nos anjos que andam pelo mundo,
creio na deusa com olhos de diamantes,
creio em amores lunares com piano ao fundo,
creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes;

creio num engenho que falta mais fecundo
de harmonizar as partes dissonantes,
creio que tudo é eterno num segundo,
creio num céu futuro que houve dantes,

creio nos deuses de um astral mais puro,
na flor humilde que se encosta ao muro,
creio na carne que enfeitiça o além,

creio no incrível, nas coisas assombrosas,
na ocupação do mundo pelas rosas,
creio que o amor tem asas de ouro. Amém.
 
 
 
 
Natália Correia
 
 
 






quarta-feira, 12 de abril de 2017

Cores


 
"Rio Negro



(…)



Pelo horizonte dissolvem-se planícies imensas pintadas de erva. Faltam nomes para tantos tons de uma mesma cor e Jorge inventa-os: vesbelho, letusto, zafaio, lusvigo. Depois esquece-se a que pertencem, mas não tem importância.

As sombras das nuvens correm pela erva e essa é outra cor ainda, uma cor escura a correr. Que nome tem uma cor que foge? Jorge deita-se e observa as nuvens. É um jogo antigo, pegar no branco e moldá-lo com a imaginação até que ele seja um dragão, um monstro, uma sereia. Imagem, imago, imitaginem. Quem foi o primeiro a fazer ideias com nuvens?

Um tigre passa-lhe por cima e é dourado como poucos. Leva um brilho novo e, ao desfazer-se, fica à vista uma bola amarela que não é daquele céu. Jorge fita a bola de luz até os olhos começarem a doer. É um sol de outros, pensa, uma luz que anda perdida. À memória chegam-lhe as histórias fantásticas lidas muitas vezes, mundos que acabam, viagens pelo espaço, seres longínquos capazes de destruir ou de criar. Aquele amarelo é cheio de possibilidades e não há nuvens que o possam voltar a esconder.

Nessa mesma noite, quando Jorge fecha os olhos para adormecer, a bola amarela espera-o brilhante. Foi a primeira vez que dormiu com uma luz acesa por dentro e passou a ser essa a cor da sua noite."
 
 
 
 
 

Nuno Camarneiro
NO MEU PEITO NÃO CABEM PÁSSAROS, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2011