quinta-feira, 26 de julho de 2012

Branco - LXXVII

A única coisa que ouvia era uma pergunta que dominava todo o cenário, uma pergunta que ecoava dentro da sua própria cabeça e que só ele escutava, como veio a saber depois, mesmo que não soubesse quem falava, quem perguntava, de quem era aquela voz. Pareceu-lhe, no entanto, que ele próprio dizia frases desconexas que ninguém ouvia, a que ninguém prestava atenção, frases sem som, que só existiam noutro lado, noutro momento da sua vida. E a última coisa em que pensou foi esta: estou fechado num quarto e espero que o tempo passe, que a chuva venha, que a tempestade se aproxime mais um pouco, que as nuvens voltem a escurecer a terra. Mas nada disto tinha sentido. Como também veio a saber muito tempo depois, ele não estava em condições de perceber se uma coisa era absurda ou não. E lembrou-se, não sabia porquê, de que não gostava de mulheres que faziam muito ruído na cama, porque o ruído o distraía, e ia começar a rir por ter recordado os ruídos da sua própria cama. E então a luz que entrava pela janela, uma luz de crepúsculo no Douro, tingida de amarelo, de fogo, de laranja, de negro, essa luz foi aumentando, aumentando, até ser quase branca, até cegá-lo de todo, como se só houvesse aquela mancha incandescente a devorar o quarto, a cobrir a cama onde aquele corpo negro e enorme estava deitado, inclinado sobre o lado esquerdo.

Francisco José Viegas
O Mar em Casablanca
(2009)

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