A única coisa que ouvia era uma pergunta que dominava todo o cenário, uma pergunta que ecoava dentro da sua própria cabeça e que só ele escutava, como veio a saber depois, mesmo que não soubesse quem falava, quem perguntava, de quem era aquela voz. Pareceu-lhe, no entanto, que ele próprio dizia frases desconexas que ninguém ouvia, a que ninguém prestava atenção, frases sem som, que só existiam noutro lado, noutro momento da sua vida. E a última coisa em que pensou foi esta: estou fechado num quarto e espero que o tempo passe, que a chuva venha, que a tempestade se aproxime mais um pouco, que as nuvens voltem a escurecer a terra. Mas nada disto tinha sentido. Como também veio a saber muito tempo depois, ele não estava em condições de perceber se uma coisa era absurda ou não. E lembrou-se, não sabia porquê, de que não gostava de mulheres que faziam muito ruído na cama, porque o ruído o distraía, e ia começar a rir por ter recordado os ruídos da sua própria cama. E então a luz que entrava pela janela, uma luz de crepúsculo no Douro, tingida de amarelo, de fogo, de laranja, de negro, essa luz foi aumentando, aumentando, até ser quase branca, até cegá-lo de todo, como se só houvesse aquela mancha incandescente a devorar o quarto, a cobrir a cama onde aquele corpo negro e enorme estava deitado, inclinado sobre o lado esquerdo.
O verde come o resto do arco íris... Quem quer vir combater Contra a monotonia?
Era em Caldelas que o meu desespero se exprimia assim. Mas qual o quê! As ninfas, engrinaldadas de limos, riam-se e mergulhavam nas fontes. E um companheiro de Fafe, daltónico como todos os seus comprovincianos, só me sabia repetir:
- É sedativo...
- E bovino! - refilava eu.
Pouco depois, a caminho de Guimarães, com antolhos de parra a impedirem o aceno de qualquer horizonte, apetecia mais do que ruminar. Uma indizível melancolia, para além do quadrúpede, mandava especar a raiz num lameiro e vegetar.
O mapa que representava o oceano oferecia, à luz de uma lanterna surda, uma superfície tão unida, tão lisa como a superfície luzidia do mar. Duas réguas paralelas e um par de compassos estavam pousados sobre a carta; a posição do navio, tomada ao meio-dia, era indicada por uma cruzinha negra, e a linha reta, traçada com um firme risco de lápis até Perim, marcava a rota do navio, o caminho das almas para o Santo Lugar, a promessa de salvação, a certeza de recompensas eternas. O lápis, com a sua ponta afilada contra a costa dos somalis, jazia imóvel como um destroço flutuando numa angra, ao abrigo de um cais. "Como marchamos bem!", pensava Jim espantado, com uma espécie de gratidão por aquela grande paz do mar e do céu. Naquele momento, ele não sonhava mais que ações valorosas; acariciava aqueles pensamentos, que formavam a melhor parte da sua vida, sua verdade secreta e sua realidade oculta. Dotados de uma virilidade suntuosa e do encanto da imprecisão, eles passavam diante de Jim num desfile heróico, levavam-lhe a alma, que embriagavam com o filtro divino de uma infinita confiança em si própria. Não havia obstáculo que ele não ousasse afrontar. Esta ideia lhe era tão cara, que ele sorria com os olhos maquinalmente fixos diante de si e, quando lançava um olhar para trás, via o rastro branco aberto sobre o mar pela quilha do barco, tão reto como a linha negra traçada sobre a carta pelo lápis.
" (...) uma edição de selos com cinco novos desenhos, numa coleção intitulada "Comunicar a Cores".
Ao todo, serão postos a circular 1,5 milhões de selos com o código de identificação de cores para daltónicos - o ColorADD -, criado pelo designer português Miguel Veiga, de 42 anos.
O selo vermelho terá o valor de 0,32 cêntimos e poderá ser usado para correio nacional. O azul destina-se a correio urgente (correio azul) e custará 0,47 cêntimos. O amarelo servirá para a Europa, por 0,68 cêntimos. Outras duas cores, preto (0,80 cêntimos) e branco (um euro)poderão ser usadas para correio fora da Europa.
Foram precisamente estas cinco as cores-base do projeto desenvolvido por Miguel Veiga que as associou a um símbolo gráfico, permitindo a sua identificação por parte dos daltónicos (...)"
Acordo, de manhãzinha, e é ainda cedo, demasiado cedo para gestos bruscos, urgentes, como levantar, tomar duche, comer o pão, beber o café. Nesses momentos, em que já não é o sono que se prolonga mas o prazer quase animal de poder ali estar, recordo as páginas lidas horas antes, noite dentro, e a certeza de que o livro continua à minha espera enche-me duma alegria a que não sei dar nome, porque vem da infância mas não é exactamente infantil, porque é uma alegria feita de emoções, de medos, de surpresas, de encantamento, de incredulidade, de todas as coisas que fazem com que um texto me dê prazer, isto é: me comova ou me magoe.
Ou então, acordo e penso que o livro acabou ontem, tendo eu prolongado as horas de leitura nocturna para o poder terminar, como se não soubesse já que os livros amados devem ler-se muito devagarinho, adiando o inadiável fim, distendendo o prazer de cada página, cada frase, cada palavra. Sei, no entanto, que a esse livro se seguirá imediatamente outro, um que me espera na pilha que fui fazendo, ao sabor de coisas tão diferentes como uma crítica lida, a paixão por aquele escritor, a vontade de descobrir um que ainda não conheço ou tão-só o desejo súbito, numa livraria, de levar para casa um livro novo.
Ou ainda, acordo e penso que me apetece comprar um livro, dois, três, muitos, e que esse é um dia bom, porque é então que o desejo se torna realidade, e que passearei pelos corredores das livrarias, abrindo uns, folheando outros, sabendo que, muitas vezes, não sou eu quem escolhe o livro mas sim o livro que me escolhe a mim.
Agora, que estavam quase lá, começava a ouvir-se a música de bach preferida dele, a que escutava sozinho, na biblioteca, após o lançamento de cada romance e que, dizia ele, o ajudava a pensar no seguinte ou, ela já não estava bem certa, o fazia libertar-se do último, porque era de bach, mais precisamente da partita número 4, que lhe surgiam sempre as personagens e só depois os acontecimentos que estas viveriam, o que lhe parecera sempre a ela inverosímil, dado achar que uma mesma música não poderia sugerir tantas e tão diversas personalidades, e só neste momento, pela primeira vez, lhe ocorre que poderia nem ser verdade, e apenas fazer parte do mito por ele alimentado, assim como o do Escritor solitário, sem família conhecida do grande público, isolado do mundo e das vãs glórias, uma espécie de cavaleiro sem mácula, recusando lugares políticos ou situações mundanas, aceitando unicamente os prémios porque o eram à literatura e não ao homem, como dizia ao recebê-los, numa modéstia que ele sabia falsa mas nem por isso menos encantadora, que acrescentava mais fascínio à lenda.
Maria Manuel Viana
O que não pode ser dito, in O Prazer da Leitura, Teodolito/Fnac
(2012)
Glenn Gold
(1981) Johann Sebastian Bach Partita Nº 4 BWV 828, exc. (Ouverture; Allemande) (1725-1730)