"Cresce atrás das coisas como incêndio de verdade". (Rilke - trad. MariaT.Furtado)
domingo, 31 de julho de 2011
Arco-Íris
Viram-se pela primeira vez à saída da Cinemateca.
Era sem dúvida ao fim da tarde; era talvez em meados de Outubro. Conversaram sobre os filmes a que esperavam assistir no dia seguinte e foram depois jantar a um pequeno restaurante perto da Grand'Place: tacitamente ambos escolheram, como sobremesa, um êxtase comum e silencioso diante das opulentas fachadas cobertas de ouro. Logo a seguir perderam-se, entontecidos de nardo e de jasmim, por entre as labirínticas ruelas do Barrio de Santa Cruz. Só voltaram a orientar-se quando a uma esquina divisaram, soturna e esbelta nas suas ameias, a inconfundível torre do Palazzo Vechio. Então encaminharam-se para o centro: uma espessa e ruidosa multidão atravancava, àquela hora, os passeios da Kurfurstendamm, es esplanadas da Via Veneto, as imediações da Place Pigalle. E logo nessa noite ele a acompanhou a casa - que era uma espécie de mansarda, muito sofisticada e quase luxuosa, a dois passos da Platia Omonias, a dois passos de Sloane Square. E logo nessa noite dormiram juntos.
David Mourão-Ferreira
Os Amantes e outros Contos (A Boca)
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Literatura
quinta-feira, 28 de julho de 2011
Branco - XXVI
Por mais que pertença , por alma, à linhagem dos românticos, não encontro repouso senão na leitura dos clássicos. A sua mesma estreiteza, através da qual a clareza se exprime, me conforta não sei de quê. Colho neles uma impressão alacre de vida larga, que contempla amplos espaços sem os percorrer. Os mesmos deuses pagãos repousam do mistério. (...)
Leio e estou liberto. Adquiro objectividade. Deixei de ser eu e disperso. E o que leio, em vez de ser um trajo meu que mal vejo e por vezes me pesa, é a grande clareza do mundo externo, toda ela notável, o sol que vê todos, a lua que malha de sombras o chão quieto, os espaços largos que acabam em mar, a solidez negra das árvores que acenam verdes em cima, a paz sólida dos tanques das quintas, os caminhos tapados pelas vinhas, nos declives breves das encostas.
Fernando Pessoa
O Livro do Desassossego
segunda-feira, 25 de julho de 2011
Crianças
(...) as crianças. São demasiado inquisitivas e impressionáveis. São dramáticas e apreensivas. Não suportam a penumbra nem a ambiguidade. Vêem perigo em tudo, mesmo onde não existe, pelo que nunca lhes passa despercebida uma situação em que realmente haja, nem sequer uma situação apenas turva ou irregular. Há já mais de um século que se deixou de as educar para se tornarem adultos. Muito pelo contrário, e o resultado é que os adultos da nossa época estão educados - estamos educados - para que continuem a ser crianças. Para que nos emocionemos com a competição desportiva e tenhamos ciúmes. Para que vivamos em permanente alarme e queiramos tudo. Para que tenhamos medo e nos encolerizemos. Para que nos acobardemos.
Javier Marías
Todas as Almas
sexta-feira, 22 de julho de 2011
Branco - XXIV
Eu começo a compreender que em toda a parte onde ainda domina a noite, ou seja, onde a luz eléctrica ainda não chegou, não há ciências exactas. O que há é isto: a grande escuridão depois que o sol se põe, o alto céu onde navegam estrelas; rumores e medo. Espíritos que dançam.
E tudo são inexplicações.
José Eduardo Agualusa
Nação Crioula
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domingo, 17 de julho de 2011
Azul - VIII
a flutuar no tempo indefinível,
que se multiplica nas horas,
com a fraterna perfeição dos remos.
As navegações são tão íntimas
que a inclinação dos movimentos
nos mantém em livre acesso ao areal.
Pulsai, pulsai o cintilante sono
com o marinheiro, de afãs seguidos
que não esquece ao velho do Restelo
em sua barca de rio, possuindo o mar.
Xosé Lois García
O Som das Águas Lentas (1999)
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Xosé Lois García
Branco - XXII
Regis Lansac (1986)
Fala se tens palavras mais fortes do que o silêncio, ou então guarda silêncio.
Eurípedes (485-406 a.c.)
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sábado, 16 de julho de 2011
Dunhuang
Não se agarre a mim!
Fazê-lo é injusto.
Sou choupo perto de um tanque.
Um agarra-se, outro, um ramo quebra.
Amores um tempo.
Dunhuang (séculos V-X)
Poemas Anónimos-Turcos, Mongois, Chineses e Incertos (Gil de Carvalho)
Fazê-lo é injusto.
Sou choupo perto de um tanque.
Um agarra-se, outro, um ramo quebra.
Amores um tempo.
Dunhuang (séculos V-X)
Poemas Anónimos-Turcos, Mongois, Chineses e Incertos (Gil de Carvalho)
quarta-feira, 13 de julho de 2011
Amor II
Tê-la visto
Tê-la visto aproximar-se
Com tanta beleza é
Alegria para sempre no meu coração.
Nem o tempo eterno pode retirar-me
Aquilo que ela me trouxe.
Poemas de Amor do Antigo Egipto - 1567-1085 a.c. -, trad. Hélder Moura Pereira
Tê-la visto aproximar-se
Com tanta beleza é
Alegria para sempre no meu coração.
Nem o tempo eterno pode retirar-me
Aquilo que ela me trouxe.
Poemas de Amor do Antigo Egipto - 1567-1085 a.c. -, trad. Hélder Moura Pereira
terça-feira, 12 de julho de 2011
Zhang Kejiu
PENSAMENTO PRIMAVERIL
Vê-lo
perguntar-lhe
como se perderam elas as primeiras palavras?
ao vento de leste um sonho desfaz-se na trapeira de seda
lua fria baloiço
ela aperta o pipa contra si
depois à luz da lâmpada fere uma corda
a primavera profunda não chega até aqui
as cinco flores
o cavalo inocente
debaixo de que salgueiro?
Zhang Kejiu, séc. XIV
Cinquenta "Xiaoling" (trad. Albano Martins)
Vê-lo
perguntar-lhe
como se perderam elas as primeiras palavras?
ao vento de leste um sonho desfaz-se na trapeira de seda
lua fria baloiço
ela aperta o pipa contra si
depois à luz da lâmpada fere uma corda
a primavera profunda não chega até aqui
as cinco flores
o cavalo inocente
debaixo de que salgueiro?
Zhang Kejiu, séc. XIV
Cinquenta "Xiaoling" (trad. Albano Martins)
segunda-feira, 11 de julho de 2011
domingo, 10 de julho de 2011
sábado, 9 de julho de 2011
Azul - VII
Quando as paródias não se multiplicam
pelo contágio triunfal dos lábios
os arcos unificam a voz em grito
da alegria das peixeiras.
Algo dói no derradeiro eco que se sente
como se o ar mordesse, como uma fera,
a síplica das bocas que não têm final.
Horizonte de asas para a solidão do chão,
tudo é tão lindo para os amantes
que os arcos já devem ser de turbilhão.
Xosé Lois García
O Som das Águas Lentas, 1999
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Xosé Lois García
sexta-feira, 8 de julho de 2011
Cultura e Civilização
O conhecimento pode instruir-nos, mas pode levar-nos a sucumbir à propaganda nacionalista: o nosso povo é melhor que os outros. Neste caso a leitura e a cultura conduzem-nos à barbárie. A propaganda nazi conquistou as massas graças aos recursos culturais...
Conhecimento e civilização são coisas distintas. Ser civilizado é uma categoria moral. Gente inculta pode actuar de modo moral. Um camponês analfabeto pode ser mais generoso que um professor de filosofia e, por isso, mais civilizado.
Tzvetan Todorov
Geo, una nueva visión del mundo, Out./2010
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Tzvetan Todorov
terça-feira, 5 de julho de 2011
Cultura
A cultura só é importante se modificar para melhor a vida das pessoas. Eu estou-me nas tintas para a cultura com K. Se derem a escolher a um tipo que está com fome uma refeição ou uma peça de teatro, acho que esse tipo será estúpido se fosse ao teatro. A cultura só pode funcionar depois de uma série de requisitos estarem preenchidos. E a maior parte das pessoas vive bem sem livros, sem discos, sem filmes.
Miguel Guilherme
Revista Única, 10/6/2011
domingo, 3 de julho de 2011
Tzvetan Todorov
A sabedoria que nos precede não chega para não repetirmos os erros do passado; não é hereditária nem contagiosa. Deve ser adquirida por cada pessoa, de novo, desde o princípio. Para mim a sabedoria significa a capacidade de cada um se defrontar com a barbárie que há em si, para a enclausurar numa atitude mais civilizada.
Tzvetan Todorov
Geo, una nueva visión del mundo, Out./2010
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