quarta-feira, 7 de maio de 2014

Natália Correia





AUTOGÉNESE



Nascitura estava
sem faca nos dentes
cómoda e impura
de não ter vontade
de bater nas gentes.

Nasce-se em setúbal
nasce-se em pequim
eu sou dos açores
(relativamente
naquilo que tenho
de basalto e flores)
mas não é assim:
a gente só nasce
quando somos nós
que temos as dores;

pragas e castigos
foram-me gerando
por trás dos postigos
e um fórceps de raiva
me arrancou toda
em sangue de mim.

Nascitura estava
sorria e jantava
e um beijo me deste
tu Pedro ou Silvestre
turvo namorado
do verão ou de outono
hibernal afecto
casca azul do sono
sem unhas do feto.

Eu nasci das balas
eu cresci das setas
que em prendas de sala
me foram jogando
os mulheres poetas
eu nasci dos seios
dores que me cresceram
pomos do ciúme
dos que os não morderam;

nasci de me verem 
sempre de soslaio
de eu dizer em junho
e eles em maio
de ser como eles
às vezes por fora
mas nunca por dentro 
perfil de uma estátua
que não sou de frente.

Nascitura estava
e mais que imperfeita
de ser sorte ou dado
que qualquer mão deita.

Eu nasci de haver
os bairros da lata
do dedo que escapa
dos sapatos rotos
da fome que mata
o que quer nascer
e que o sábio guarda
em frascos de abortos

eu nasci de ver
cheirar e ouvir
dum odor a mortos
(judeus enlatados
para caberem mais
mas desinfectados)
pelas chaminés
nazis a sair
de te ver passar
de me despedir
de teus olhos tristes
como se existisses.

Nascitura estava
tom de rosa pulcra
eu me declinava
vésper em latim:
impura de todos
gostarem de mim.


Natália Correia
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes
da poesia moderna portuguesa
Assírio & Alvim
1985


http://canaldepoesia.blogspot.pt/2011/06/natalia-correia-autogenese.html



Sem comentários:

Enviar um comentário