O senhor Ventura riu-se. O velho Vitorino! Alto, esgrouviado, chapéu à marialva, calças de boca de sino, jaleca, faixa preta, desde que o mundo era mundo que corria de lés a lés aquele santo Alentejo a falar em verso e a viver dos repentes. Muito mais idoso do que ele, senhor Ventura, já no tempo de rapaz o conhecia, vestido sempre a rigor, e criado pela graça da vida. Numa terra onde, chegada a hora, toda a gente moirejava de sol a sol, pois não havia lugar para preguiça nem costas altas, cabia a figura esguia do trovador, a dizer versos e incapaz de deitar mão a uma palha.
-Ajuda aqui, ó Vitorino - pedia-lhe um ou outro, para o ouvir.
Um poeta não trabalha
Que lho proíbe o destino.
Isto é tudo uma canalha
E o mundo é um desatino.
Era a resposta.
-Então para onde é a ida? - perguntou o senhor Ventura, já acalmado por aquela presença, que a toda a parte levava uma espécie de paz do nada, uma deseroização do suor, da ambição, do amor e de todas as desgraças que tinham afligido o seu coração.
Eu vou-me por aí além
Com a ajuda dos meus pés.
Não digo adeus a ninguém
Porque cá volto outra vez.
E partiu, de facto. Na vastidão da planície, o seu vulto magro foi diminuindo, diminuindo, até ser apenas um ponto negro que se demorou largo tempo nos olhos apaziguados do senhor Ventura. Depois, subitamente, desapareceu.
Miguel Torga
O Senhor Ventura
(1943)
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