segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Cores

    Margarida retirou a cabeça dos vidros e debruçou-se na amurada.
       À medida que o vapor se afastava, a cidade, feia ao perto e de casario tapado por Canta-Galo, a Misericórdia e a Rocha, desenhara na rede das luzes o seu corpo de sereia estirada. A bombordo perfilavam-se os vultos escalvados e negros dos ilhéus das Cabras, como uma baleia seguida do seu baleote inviável. A estibordo, fechado de pinheiros e muralhas, o negrume do Monte Brasil.
         Margarida deixou-se vaguear naquele recanto do convés. Um velho atlético, de barretinho de seda, dormia de boca aberta numa cadeira de lona, com os óculos na manta de viagem. Ao fundo, aproveitando o foco dos mostradores dos manípulos de manobra e a tampa especada da grande clarabóia que arejava a sala de jantar, um rapaz fino e triste, vestido pobremente, encarniçava-se sobre um lápis e um bocado de papel, contando pelos dedos. Talvez um caixeiro-viajante... Talvez um poeta... Para caixeiro-viajante era melancólico demais... Os caixeiros de amostras usavam uns bigodes floridos e fatos espampanantes. Ele tinha um buçozinho sem guias e as calças por vincar.

Vitorino Nemésio
Mau Tempo no Canal
(1944)

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